Pesquisadores brasileiros descreveram oficialmente uma nova espécie de inhambu que vive apenas nas montanhas da Serra do Divisor, no Acre, reforçando a importância científica e a vulnerabilidade dessa região da Amazônia. A ave, batizada cientificamente de Tinamus resonans e conhecida como sururina-da-serra, foi registrada em uma estreita faixa de altitude, entre cerca de 300 e pouco mais de 400 metros, em áreas de floresta montana dentro do Parque Nacional da Serra do Divisor, na fronteira com o Peru. A confirmação da espécie foi publicada em dezembro de 2025 na revista Zootaxa e é resultado de expedições de campo realizadas entre 2021 e 2025.
A Serra do Divisor é um maciço isolado no extremo oeste da Amazônia brasileira, com picos que chegam a 800 metros e ambientes que vão de florestas submontanas a formações mais baixas e secas no topo, sobre solos arenosos, pobres em nutrientes e sujeitos a ventos constantes. Esse conjunto de condições cria habitats raros na região, com avifauna própria e espécies endêmicas, entre elas o papa-formiga Thamnophilus divisorius e, agora, a sururina-da-serra.
A história da descoberta começou em outubro de 2021, quando o ornitólogo Fernando Igor de Godoy gravou um canto diferente no alto da Serra do Divisor. A vocalização lembrava a de inhambus do gênero Tinamus, mas não coincidia com nenhuma espécie conhecida, mesmo após comparação com gravações disponíveis e consulta a especialistas. “Assim que saí, já ouvi esse inhambu cantando. Como já trabalhei muitos anos no Acre, conheço bem a avifauna da região. Eu tinha certeza que era alguma coisa nova”, afirma Godoy, que decidiu registrar o som e enviá-lo a vários pesquisadores.
Nos anos seguintes, o mesmo padrão de canto foi novamente detectado, mas sem sucesso na observação detalhada da ave, devido à vegetação densa, ao terreno íngreme e a um fenômeno acústico que difunde o som no sub-bosque e dificulta localizar a origem da voz. Em novembro de 2024, usando playback construído a partir das primeiras gravações, o pesquisador Luis A. Morais conseguiu atrair dois indivíduos, registrar fotos em boa qualidade e confirmar que se tratava de um inhambu com plumagem não descrita até então. Após obtenção das licenças ambientais, a equipe coletou exemplares e iniciou a análise morfológica, ecológica e acústica que embasou a descrição formal da espécie.
O artigo científico apresenta a sururina-da-serra como uma nova espécie de Tinamus associada às florestas montanas da Serra do Divisor. A ave possui máscara facial escura, peito ferrugíneo, dorso marrom-acinzentado uniforme, sem barras, e partes inferiores com áreas claras no ventre e flancos discretamente marcados. A vocalização é descrita como um canto longo, que pode ultrapassar 45 segundos, dividido em seções sucessivas com notas prolongadas, seguidas de frases tremuladas, em um dos repertórios mais extensos já registrados para a família dos tinamídeos.
No trabalho de campo, os pesquisadores usaram playback, gravação acústica, observação direta e georreferenciamento dos pontos de escuta para mapear a distribuição da espécie nas encostas da serra. A partir da distância média entre indivíduos detectados e do recorte de altitude em que a sururina-da-serra foi registrada, foi elaborado um modelo de habitat potencial. O estudo estima densidade de aproximadamente um indivíduo a cada 30 hectares e uma população total em torno de 2.100 aves restritas ao maciço da Serra do Divisor.
As expedições também revelaram um comportamento incomum em comparação com outros inhambus amazônicos. A espécie se desloca pelo solo da floresta e permite aproximação humana sem demonstrar reação de fuga, em um ambiente onde quase não há grandes mamíferos predadores, como onças, queixadas e raposas. “Ele não reconhece o ser humano como ameaça. A gente chega a quatro, cinco metros e ele continua andando, como se nada estivesse acontecendo”, relata Luis Morais, ao comparar a situação com a história do dodô, ave terrestre extinta nas ilhas Maurício.
Segundo o artigo e o relato dos pesquisadores, a sururina-da-serra vive em um tipo de vegetação altimontana com solos arenosos irregulares, camada densa de matéria orgânica, raízes expostas e alta umidade, em um mosaico de campinaranas de topo de serra e florestas de porte mais baixo. Esse ambiente forma uma espécie de “ilha no céu”, sem equivalentes em outras áreas da Amazônia. Como a espécie ocupa apenas uma faixa altitudinal estreita e não desce para as florestas de baixio, o habitat disponível é fisicamente limitado pelas encostas e não tem espaço para se expandir.
Apesar de a área estar protegida pelo Parque Nacional da Serra do Divisor, os pesquisadores alertam que a combinação entre distribuição restrita, dependência de um microambiente específico e comportamento pouco defensivo aumenta a vulnerabilidade da sururina-da-serra. A principal preocupação é o efeito das mudanças climáticas sobre a vegetação de altitude. “Se a temperatura subir ou o regime de chuvas se alterar, esse ‘andar’ da montanha tende a se deslocar para cima em busca de condições mais frias. O problema é que não existe ‘mais acima’. O habitat da espécie já está no ponto mais alto possível. Ou seja, ela não tem para onde ir”, explica Morais.
O estudo também cita ameaças associadas a projetos de infraestrutura e mudanças no status de proteção da unidade de conservação. Propostas para rebaixar o parque a Área de Proteção Ambiental, permitir mineração em áreas montanhosas e construir rodovia ligando Cruzeiro do Sul a Pucallpa, além de uma ferrovia transcontinental cortando a Serra do Divisor, são apontadas como impactos potenciais sobre o habitat da sururina-da-serra e de outras espécies endêmicas da região. Incêndios florestais e a introdução de animais domésticos no alto da serra são mencionados como fatores adicionais de risco, capazes de alterar rapidamente o equilíbrio ecológico em uma área pequena e isolada.
Para os autores da descrição, a descoberta de Tinamus resonans reforça o papel da Serra do Divisor como centro de endemismo de montanha na Amazônia ocidental e amplia a responsabilidade do país na proteção desse patrimônio natural. O artigo destaca que a última descrição de uma espécie desse grupo de inhambus florestais havia ocorrido há cerca de 80 anos. “Eu acho que todo ornitólogo sonha em encontrar uma espécie nova. Quem já passou tempo no mato imagina como seria descobrir algo totalmente inusitado para a ciência. E é exatamente esse sonho que estou realizando”, afirma Fernando Igor de Godoy.
Os pesquisadores defendem que a nova espécie pode se tornar um símbolo da conservação do único parque nacional do Acre e fortalecer atividades de ecoturismo, como a observação de aves, já praticadas na Serra do Divisor. Ao mesmo tempo, apontam a necessidade de estudos adicionais sobre a ecologia, a reprodução e a dinâmica populacional da sururina-da-serra, para embasar estratégias de manejo capazes de garantir a persistência da espécie diante das pressões ambientais e de decisões sobre o uso do território na região de fronteira.
Confira o estudo completo >> https://mapress.com/zt/article/view/zootaxa.5725.2.6?fbclid=PAdGRleAOcCpJleHRuA2FlbQIxMQBzcnRjBmFwcF9pZA8xMjQwMjQ1NzQyODc0MTQAAafyw2ztilC7jKrvDoO8v84MeQpR8dv5omp-L6U37TOrLH5cqdVBA9mlEvYB9A_aem_byq-DucJx2qMsR38Gmu8uQ
Foto: Luis Morais