A Defensoria Pública da União publicou nesta quinta-feira, 5 de dezembro de 2025, em Brasília, uma nota técnica na qual afirma que a consulta livre, prévia e informada, prevista na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, não se aplica a povos indígenas isolados, por considerar que a própria condição de isolamento já expressa a negativa a qualquer ação que possa afetar seus territórios, bens e modos de vida.
O Brasil é signatário da Convenção desde 2002, compromisso internacional que estabelece a obrigatoriedade de consulta aos povos indígenas e comunidades tradicionais antes da adoção de medidas administrativas ou legislativas com potencial de impacto sobre suas vidas. A DPU reconhece a centralidade desse instrumento para a garantia de direitos, mas argumenta que, no caso dos povos isolados, a sua aplicação se torna inviável por violar princípios do próprio direito internacional, como a autodeterminação dos povos. Segundo o defensor público federal Renan Sotto Mayor, titular do recém-criado Ofício de Povos Isolados e de Recente Contato da DPU, “a consulta [prévia] é sempre fundamental. Agora, quando você fala de povos indígenas isolados, a consulta já está feita. E a resposta é não”.
A criação do ofício, formalizada em outubro de 2025, marca a institucionalização de uma atuação específica da Defensoria voltada a esse tema. A posição apresentada na nota técnica não surge de forma isolada no ordenamento jurídico. Normativas da Fundação Nacional dos Povos Indígenas e do Ministério dos Povos Indígenas consolidaram o princípio do não contato como diretriz da política indigenista. Em 2020, o Conselho Nacional de Direitos Humanos aprovou resolução reconhecendo a impossibilidade de consulta a povos isolados, entendimento que foi reafirmado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2022.
Especialistas da área avaliam que o novo posicionamento da DPU reforça esse conjunto de entendimentos. Para o coordenador executivo do Observatório dos Povos Indígenas Isolados, Fábio Ribeiro, a nota técnica amplia a base jurídica de proteção ao tratar do tema no âmbito da Defensoria e da Justiça Federal. Já o coordenador-geral de Povos Isolados e de Recente Contato da Funai, Marco Aurélio Milken Tosta, afirmou que a reafirmação periódica desses entendimentos em diferentes instâncias fortalece a atuação do Estado na defesa dos direitos desses povos.
A DPU também sustenta que o isolamento não pode ser interpretado como uma condição abstrata, mas como resultado de processos históricos de violência, expulsões e massacres. Um dos casos citados no debate público é o do povo Tanaru, cuja etnia deixou de existir em 2022 com a morte do último sobrevivente, conhecido como “índio do buraco”. Ele viveu isolado por 26 anos em uma área de aproximadamente 8 mil hectares de floresta, em Rondônia, após sobreviver a ataques ocorridos no início da década de 1990 dentro de uma fazenda.
Dados da organização não governamental Survival International indicam que mais de 90% dos povos indígenas isolados do mundo vivem sob ameaça de atividades extrativistas legais e ilegais. A entidade estima a existência de 196 povos isolados no planeta. O Brasil concentra 115 desses registros, segundo a Funai, o que coloca o país no centro das discussões internacionais sobre proteção desses grupos. Para a Defensoria, essa condição impõe ao Estado brasileiro uma responsabilidade ampliada, já que qualquer erro administrativo, ação de agentes externos ou contato não planejado pode gerar o extermínio de uma etnia inteira.
Com a publicação da nota técnica, a DPU reforça que a política de não contato, associada à proteção territorial e à vigilância permanente das áreas onde vivem povos isolados, segue como o principal instrumento de garantia da sobrevivência desses grupos no país, diante de um cenário de pressões sobre terras indígenas, avanço de atividades ilegais e disputas por recursos naturais.
Foto: Gleilson Miranda