O líder indígena Benki Piyãko tem usado suas redes sociais para compartilhar os trabalhos realizados em seu Centro Yorenka Tasorentsi, na margem do Rio Juruá, em Marechal Thaumaturgo, Acre. Nos últimos dias, ele mostrou a colheita de Bacaba. A fruta, que tem o nome científico de Oenocarpus, é uma palmeira nativa da Região Amazônica, com maior frequência nos estados do Amazonas e Pará. Parecida com o açaí, mas com menos popularidade, esta palmeira é de alto porte, podendo atingir até 20 metros de altura e do fruto é possível extrair polpa, óleo e amêndoa.
No post em suas redes, Benki salientou a importância de manter a floresta em pé. “Estamos tirando aqui a bacaba, esse é um teste aqui no nosso espaço de quantas toneladas podemos coletar. Vamos fazer com a maior sustentabilidade possível, porque a floresta em pé é vida para muita gente. Bacaba é conhecida por ser prima do “açaí” aqui no Acre. O tempo de inverno (estação chuvosa) é emocionante porque a terra Yorenka Tasorentsi está recheada com estas deliciosas frutas. Bacaba tem um bom sabor, leitoso e nozes. Não há nada igual e é por isso que o nosso plano é plantar”
Em outros tantos vídeos, o líder, do povo Ashaninka da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, apresenta a diversidade cultural e florestal que está trabalhando na região. Em seu Centro, onde recebe diversos turistas, autoridades e diversos eventos, está sendo construído um conjunto de açudes para criação de peixe, também.
Durante o Seminário Internacional TXAI Amazônia, realizado em Rio Branco entre os dias 25 e 28 de junho, a gestora ambiental Magaly Medeiros compartilhou sua visão sobre os caminhos da bioeconomia e o papel estratégico do Acre nas políticas públicas para a floresta em pé. Com longa trajetória no setor ambiental do Estado, Magaly atuou diretamente na construção e implementação do Sistema de Incentivos a Serviços Ambientais (SISA) e do programa REM Acre, hoje referência replicada em outros estados como o Mato Grosso.
Atualmente à frente da Aripua Consultoria Socioambiental, empresa que atua com projetos ligados à sociobiodiversidade, Magaly participou do seminário como convidada e avaliou os debates com foco na valorização dos saberes tradicionais. “A principal mensagem que levo do TXAI é que a bioeconomia precisa ter um olhar atento para os saberes e a ciência dos povos indígenas e das comunidades tradicionais. A floresta em pé não se sustenta sem políticas públicas consistentes”, afirmou.
Para Magaly, o seminário reforçou o protagonismo cultural e político dos povos da floresta. “Mostrou o valor da floresta em pé e evidenciou o protagonismo dos povos do Acre nesse processo”, destacou. Segundo ela, eventos como o TXAI são fundamentais para fomentar o pensamento crítico, especialmente ao criar espaços de escuta e troca entre diferentes visões e experiências: “O seminário propicia um espaço de diálogo para discutir e debater diferentes pontos de vista.”
Ao avaliar a relação entre conservação ambiental e dimensões sociais e culturais, Magaly apontou que o seminário abordou a biodiversidade de forma transversal, com maior ênfase no desenvolvimento da bioeconomia ancorado na ciência e na tecnologia, mas sem deixar de lado os conhecimentos dos jovens e dos povos tradicionais.
Magaly também prestigiou – Apresentação do Projeto Mamgap do povo Zoró apoiado pelo REM MT – Sala Casos de Sucesso / Foto: Cedida
Na entrevista, ela também ressaltou o papel do Estado na formulação de políticas sustentáveis. “O papel do Estado é essencial na construção de soluções sustentáveis. A experiência do REM Acre, por exemplo, foi fundamental para que o Mato Grosso pudesse replicar essa política com o REM MT. Hoje, essa iniciativa está avançando em projetos voltados à autonomia dos povos indígenas e ao fortalecimento das cadeias de valor”, explicou.
O TXAI Amazônia reuniu lideranças indígenas, gestores públicos, pesquisadores e representantes do setor privado para discutir caminhos viáveis para a bioeconomia na Amazônia Legal. Com foco nos saberes tradicionais, inovação e valorização dos territórios, o evento se consolida como espaço estratégico para pensar políticas de desenvolvimento regional baseadas na sociobiodiversidade.
No terceiro dia do Seminário Internacional Txai Amazônia, realizado no espaço e_Amazônia da Universidade Federal do Acre, o painel Uso da terra com sabedoria como base para a gestão territorial de terras protegidas e mitigação às mudanças climáticas propôs um diálogo profundo entre ciência, ancestralidade e política pública. Sob mediação do pesquisador Eufran Amaral (Embrapa), a roda de conversa reuniu o coordenador da Funai Jefferson Fernandes, o antropólogo indígena Daniel Iberê, o professor Valdinar Melo (UFRR) e a ambientalista Julie Messias, para responder a uma questão central: como o uso do território pode ser motor de transformação diante da emergência climática?
Jefferson Fernandes: política indigenista e instrumentos de gestão
Abrindo o painel, Jefferson Fernandes apresentou a estrutura e os desafios enfrentados pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), autarquia vinculada ao Ministério dos Povos Indígenas. Ele explicou que a Funai atua em cinco frentes principais: proteção e promoção dos direitos indígenas, administração do patrimônio indígena, produção de estudos e pesquisas, monitoramento de políticas públicas diferenciadas e fomento ao etnodesenvolvimento. Com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, disse Jefferson, os povos originários passaram a ter protagonismo na formulação das políticas que os afetam.
Um dos pontos centrais da fala foi a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), criada por decreto em 2012 e ainda em luta para ser transformada em lei. A política, segundo ele, é estratégica para assegurar a conservação, a sustentabilidade e o planejamento dos territórios indígenas — não como instrumentos burocráticos, mas como “planos de vida” construídos pelas próprias comunidades, respeitando seus tempos e saberes. Fernandes destacou que, apesar do aumento de recursos em decorrência da ADPF 709 (medida do STF durante a pandemia), o orçamento da Funai segue insuficiente para as múltiplas demandas da Amazônia. “Não há gestão de território sem demarcação. Sem terra garantida, não há política pública eficaz”, alertou.
Daniel Iberê: o mundo que insiste em replantar o mundo
A fala mais simbólica e comovente veio de Daniel Iberê, indígena Mbyá Guarani e antropólogo, que costurou imagens poéticas com críticas contundentes à exclusão dos povos indígenas dos processos de decisão. “Desde que a bota colonial pisou pela primeira vez o nosso solo, começou o nosso desviver”, afirmou. Para Iberê, não é possível falar de sabedoria no uso da terra sem compreender que os territórios são vivos, repletos de espiritualidade, história e afetos. Ele criticou a forma como licenças ambientais ignoram a presença dos espíritos dos lugares e ressaltou que os povos indígenas não são convidados a deliberar sobre as políticas que lhes dizem respeito.
Ao questionar a lógica da monocultura, da mineração e da mercantilização da natureza, Iberê alertou que a febre da Terra, nomeada como “emergência climática” pelo mundo não indígena, já ameaça o futuro de todos. “A pata do boi segue avançando sobre o nosso território. Semeiam desertos em monocultivos e dizem que há paz — uma paz triste de cemitérios.” Em tom de denúncia e esperança, afirmou que os povos originários seguem replantando a diversidade, mesmo diante da violência. “Não somos um galho da ciência europeia. Somos árvores inteiras, somos floresta.”
Valdinar Melo: o solo como fundamento da vida
Na sequência, o professor Valdinar Melo trouxe a perspectiva técnico-científica sobre o solo amazônico e sua diversidade. “Sem solo, não há vida. É do solo que vem a nossa carne, a nossa energia, o nosso pensamento”, disse. Com ampla experiência em pedologia e manejo, Melo alertou para a necessidade urgente de zonamentos mais detalhados, regionais e locais, que considerem os diferentes tipos de solo e clima existentes na Amazônia. “Não se pode planejar o uso da terra sem conhecer profundamente a paisagem.”
Ele defendeu a instalação de estações meteorológicas em comunidades tradicionais para fortalecer o monitoramento climático e a autonomia territorial. Também chamou atenção para o uso de resíduos orgânicos e minerais locais como alternativa à dependência de insumos importados, como o fosfato. Relatou experiências com compostagem de resíduos do açaí, madeira e piscicultura em Roraima, com o objetivo de produzir biofertilizantes adaptados às realidades locais. Em tom crítico, disse que “a chave do passado que nos trouxe até aqui quebrou” e que é preciso pensar em práticas conservacionistas, não como regra geral, mas adaptadas a cada território.
Julie Messias: pontes entre ancestralidade, mercado e políticas públicas
Fechando o painel, Julie Messias, diretora da Aliança Brasil de Soluções Baseadas na Natureza, defendeu a valorização dos chamados “territórios vivos” — espaços onde biodiversidade, modos de vida e saber tradicional formam um ecossistema dinâmico e interdependente. Para ela, os conhecimentos ancestrais já são tecnologias e precisam ser reconhecidos como tal. “Não podemos falar de inovação sem olhar para as práticas que já existem nas comunidades. A bioeconomia começa ali”, afirmou.
Julie trouxe números que ilustram o papel das terras indígenas na proteção da floresta: segundo o MapBiomas, essas áreas têm índice de desmatamento 20 vezes menor do que as propriedades privadas. Ela também destacou os entraves para o financiamento climático, especialmente a dificuldade das comunidades amazônicas em acessar os recursos internacionais. “Mais de 80% das associações estão inadimplentes. Como acessar editais com essa realidade?”, questionou. Por fim, apontou que o mercado de carbono e as políticas públicas precisam ser moldados com base em integridade, justiça climática e inclusão, sob risco de reproduzirem as desigualdades que dizem combater.
Um caminho que passa pelos territórios
O painel reafirmou que a resposta à crise climática não será encontrada apenas nos grandes fóruns internacionais, mas na escuta e no reconhecimento das vozes da floresta. Os caminhos apresentados pelos participantes não são homogêneos, mas convergem na necessidade de respeitar a diversidade biocultural, investir em governança territorial, e equilibrar tecnologia com ancestralidade. A Amazônia, disseram, não precisa ser reinventada — ela precisa ser respeitada. E isso só será possível se os que vivem nela forem os verdadeiros protagonistas de seu futuro.
No painel Uso da terra com sabedoria como base para a gestão territorial de terras protegidas e mitigação às mudanças climáticas, realizado durante o Seminário Internacional Txai Amazônia, na sexta-feira, 27, a gestora ambiental Julie Messias fez uma intervenção marcada por dados, provocações e propostas concretas para transformar a bioeconomia amazônica em motor de justiça climática, inclusão e desenvolvimento.
Ex-secretária da Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente e atual diretora executiva da Aliança Brasil de Soluções Baseadas na Natureza, Julie trouxe à roda o conceito de “territórios vivos” como eixo estratégico de governança territorial na Amazônia. Para ela, um território só pode ser considerado vivo quando há relação equilibrada entre o ecossistema, a biodiversidade e os modos de vida das comunidades locais. “A floresta em pé depende das pessoas em pé, com seus direitos garantidos, com autonomia sobre seus territórios e com dignidade para viver do que produzem”, afirmou.
Saber tradicional como tecnologia e política climática
Julie iniciou sua fala retomando uma das perguntas do painel: como articular saber tradicional e inovação tecnológica para mitigar os efeitos das mudanças climáticas. Sua resposta foi direta: “nós já temos tecnologia ancestral nos nossos territórios”. Para ilustrar, contou a experiência de um projeto da FGV Europe na Nigéria, onde mulheres agricultoras cultivavam com base na posição da lua e em movimentos circulares do corpo, práticas que posteriormente embasaram o desenvolvimento de tecnologias adaptadas àquele contexto. “Isso é inovação baseada em saber tradicional. E isso acontece todos os dias na Amazônia”, disse.
Ela defendeu que políticas públicas e iniciativas privadas devem reconhecer o conhecimento tradicional não como obstáculo, mas como ponto de partida para a construção de soluções ambientais. “As comunidades amazônicas sabem onde plantar, quando colher, como preservar. Falta a nós, enquanto gestores e formuladores de políticas, entender que a tecnologia pode ser circular, intuitiva, comunitária”, pontuou.
Bioeconomia: entre conceito e prática
Julie foi crítica à apropriação indiscriminada do conceito de bioeconomia, que, segundo ela, ainda não foi devidamente alinhado entre os diferentes setores. “Se você perguntar para um indígena, para um empresário, para um produtor rural ou para um técnico de governo o que é bioeconomia, cada um vai responder de uma forma diferente. Isso não é um problema em si. O problema é quando usamos o mesmo nome para coisas que se opõem na prática”, alertou.
Ela defendeu uma bioeconomia conectada à cultura local, à justiça social e ao reconhecimento do valor territorial dos produtos da floresta. “Não adianta a gente falar de escala se não resolveu ainda a logística básica na Amazônia. Como garantir um preço justo para um produto que sai de uma comunidade sem estrada, sem energia, sem apoio técnico?”, questionou. Em vez de apenas pensar em exportar produtos “verdes”, Julie propôs que se pense em garantir que a riqueza gerada pela bioeconomia fique na própria região, fortalecendo cadeias produtivas locais e organizações comunitárias.
Financiamento climático e exclusão das comunidades
Outro ponto abordado por Julie foi o desafio de acesso a recursos por parte das associações e cooperativas da Amazônia. Segundo ela, mais de 80% dessas organizações estão inadimplentes, o que as impede de participar de editais de financiamento nacional e internacional. “Não adianta abrir linhas de crédito se os que mais precisam não conseguem acessá-las”, afirmou. Ela propôs que os programas de financiamento climático prevejam instrumentos de regularização e assistência técnica, criando pontes entre os fundos disponíveis e as realidades das comunidades tradicionais.
Julie também destacou o papel estratégico do financiamento climático no contexto internacional, citando iniciativas como o Fundo Verde do Clima e o programa Floresta+ do governo federal. Ela lembrou que, embora haja bilhões de dólares anunciados para restauração florestal e soluções baseadas na natureza, ainda falta estrutura técnica e institucional nos estados e municípios para executar esses recursos de forma efetiva. “Quem está no território precisa ser protagonista. Não se trata apenas de pagar por um serviço ambiental, mas de reconhecer um direito ancestral”, disse.
Integridade, inclusão e transparência
Representando uma rede de empresas que operam com soluções baseadas na natureza, Julie defendeu que todo projeto de carbono, conservação ou restauração precisa seguir padrões elevados de integridade e ser desenvolvido com participação ativa das comunidades locais. “É preciso garantir que a floresta continue em pé com quem vive nela. E isso exige desde a escuta até a decisão compartilhada sobre o que fazer, como fazer e para quem fazer”, explicou.
Entre os critérios adotados pela Aliança Brasil, ela citou a necessidade de auditorias fundiárias, protocolos de consentimento livre, prévio e informado, e mecanismos de transparência para o uso dos recursos. “Não podemos repetir o que já foi feito com os grandes projetos de desenvolvimento na Amazônia, que trouxeram infraestrutura mas deixaram destruição. A bioeconomia precisa ser diferente”, concluiu.
A floresta não é conceito: é território
A fala de Julie Messias destacou uma visão de bioeconomia que integra mercados e justiça territorial. Para ela, os créditos de carbono e outros mecanismos financeiros são ferramentas importantes para a valorização da floresta em pé — e devem cumprir o seu papel ao colocar as populações amazônicas no centro. “Precisamos alinhar os mecanismos de remuneração, com a garantir crédito político para essas pessoas. Elas precisam ser reconhecidas como protagonistas da transformação que o mundo exige. Sem escuta, inclusão e respeito, a bioeconomia perde seu sentido e corre o risco de repetir os erros do passado”, afirmou.
Se há uma síntese possível de sua intervenção, é a insistência de que não há solução para o clima sem solução para o território. E o território, quando vivo, é também sujeito político, cultural e econômico. A floresta não é conceito — é chão, é gente, é história. E é ali que estão as respostas que o mundo insiste em procurar em outros lugares.