Connect with us

Xapuri amanhece entre o som do rio e o eco das máquinas. No horizonte, a Ponte da Sibéria desenha sua curva sobre o Acre como quem costura uma cidade partida ao meio. Rio acima, ainda cruza a velha balsa; rio abaixo, a catraia é quem continua dando o tom — lembrança de um tempo que começa a se despedir.

O concreto novo se ergue sobre o curso lento do rio e anuncia uma travessia que vai além da geografia. Por décadas, Xapuri viveu dividida por uma distância curta e, ao mesmo tempo, imensa. De um lado, o centro urbano e o movimento das praças; do outro, o bairro da Sibéria e as comunidades rurais que, até hoje, dependem do ritmo das águas para chegar à cidade. Entre os dois mundos, o cotidiano se fazia de espera, de travessias contadas pelo relógio da balsa e pela força do remo.

Agora, o som metálico das ferragens e os cheiros do cimento e do asfalto recém-assentados anunciam um novo tempo. A ponte e a estrada, a Variante, formam uma mesma linha de futuro, abrindo passagem para o movimento das pessoas, da produção e das ideias. É o fim de uma era em que a vida parava quando o rio enchia ou a lama tomava o caminho.

Xapuri se transforma diante dos próprios olhos. A cidade que nasceu da borracha, que resistiu nas lutas extrativistas e guardou a memória de Chico Mendes, volta a ser ponto de encontro. Cada estaca fincada na beira do Acre e cada quilômetro pavimentado da Variante são também um gesto de permanência, de quem acredita que o interior merece o mesmo chão firme que sustenta as capitais.

A nova Xapuri começa ali, entre o barulho das máquinas e o silêncio da água que segue correndo, levando, com ela, o último vestígio de uma travessia que ficou para trás.

O Rio Acre reflete o concreto novo e as lembranças antigas de uma travessia que sempre separou Xapuri em dois mundos: o centro e a Sibéria. À beira do barranco, o educador Elias da Costa Chaves observa o avanço da ponte como quem reconhece o fim de um ciclo. “O isolamento aqui é o que mais pesa. Antes da balsa, a canoa tinha hora pra funcionar. Oito, nove da noite já parava. Quem ficasse do lado de cá, ficava preso. Agora, com a ponte, a gente vai e volta a hora que quiser. Sai do isolamento. Pode levar a família, visitar os parentes. Minha mãe tem 85 anos. Com a ponte pronta, posso atravessar com ela quando quiser. É liberdade.”

Elias fala com a tranquilidade de quem esperou uma vida inteira. Ele lembra do pai, seringueiro, que morreu sonhando com essa obra. “O velho dizia que um dia iam fazer. Mas era só conversa. Toda eleição, promessa. Só zoada. Quando o governador Gladson veio e prometeu. Está cumprindo com a promessa dele. Fizeram o lançamento aqui no salão comunitário, ele mostrou uma saia e disse que se não cumprisse ia vestir essa saia. Eu acreditei que ele ia fazer essa ponte.”

O educador, que hoje atua em uma escola em Epitaciolândia, nasceu no Seringal Barra e, quando chegou na Sibéria,  iniciou a vida de travessias, estudava do outro lado e todos os dias fazia o mesmo trajeto. “Descia o barranco liso, no escuro, com lanterna. Quando chovia, a gente caía na lama, voltava pra casa molhado. Era rotina. A gente fez o fundamental aqui, o médio do outro lado. Para atravessar, era na remada. Motor de rabeta é coisa nova. Antes era remo, força de braço. Agora os meninos vão estudar de ônibus. Vão ter o que a gente não teve.”

Com o olhar preso na estrutura que já anuncia um novo futuro, Elias descreve a obra em uma expressão: elo de ligação. “Uma ponte une. Ela junta o que o rio separa. Integra. E aqui tudo é Xapuri. Antes era só promessa, agora é realidade. Isso aqui muda tudo. É o fim do isolamento.”

Enquanto Elias conta sua história, como é de costume no interior, chega junto mais gente para a conversa. Josimar dos Santos Silva, 47 anos, enfermeiro e líder comunitário do Bairro Sibéria, já marca para daqui há pouco a entrevista. “Eu nasci aqui, moro aqui há 47 anos. Vi muita gente sofrer por falta de travessia. A catraia fechava às dez da noite e a gente ficava isolado. Já fizemos parto na beira do rio porque não dava tempo de chegar no hospital. Já perdemos gente que infartou do lado de cá, que foi furada, que precisou de socorro e não conseguiu atravessar.”

Em um relato que marcou profundamente a comunidade, ele conta como uma noite trágica selou o destino de tantas pessoas naquele verão de 2012. “Uma família voltava de um culto, e a catraia bateu num pau no rio seco. Três pessoas morreram. Tinha criança, idoso, gente que não sabia nadar. A gente ficou gritando na beira do barranco. Foi um desespero. Teve morador que caiu na água para ajudar essas pessoas, outros pegaram canoa, desceram rapidamente. Muitos foram salvos, outros ficaram enganchados no galho, mas muitas pessoas mesmo assim foram salvas. Hoje, onde está localizada a balsa, foram retiradas pessoas lá já quase morrendo. A gente sofreu essa fatalidade em decorrência da ponte que a gente não tinha na época.” 

Para Josimar, a ponte é mais que estrutura: é um reparo histórico, após vários pedidos e até abaixo-assinados entregues para governantes ao longo dos anos. “Essa é uma luta de décadas. A comunidade nunca perdeu a fé. Quase metade da população de Xapuri mora desse lado. Quando a balsa para, tudo para. Agora a gente vai poder ir e vir, trabalhar, estudar, viver com dignidade.”

Ele fala do bairro com orgulho. “Hoje a Sibéria tem mais de 3 mil casas, tem mercado, farmácia, agropecuária. É um bairro que cresceu, que tem história. Aqui todo mundo se conhece, todo mundo se ajuda. Eu amo esse lugar. Não saí quando era difícil, não vou sair agora. Essa ponte chega no tempo certo. Antes da ponte era atraso. Depois da ponte, é futuro.”


Com extensão total de 363 metros, a obra tem orçamento de mais R$ 40 milhões, sendo R$ 15 milhões provenientes de emenda parlamentar do senador Marcio Bittar e R$ 25 milhões de investimento do Estado.


Na sede do Deracre, em Rio Branco, Sula Ximenes fala com a calma de quem conhece cada detalhe da obra. Hoje, ela preside a autarquia e acompanhou a Ponte da Sibéria e a Estrada da Variante desde o primeiro traço de projeto, quando era chefe de gabinete. “Foi um sonho muito antigo daquela população”, diz, relembrando o dia da ordem de serviço, em 2022. “Eu estive lá quando o governador Gladson prometeu, e nós licitamos com recurso próprio. Desde então começou a obra, e agora, finalmente, está próximo para a gente fazer essa inauguração.”

Orgulhosa do trabalho de todos os envolvidos e do crença do governador em sua gestão, ela afirma: “Será um marco na história de Xapuri deixar a balsa para trás. Eu sempre, quando vou lá, vejo assim: é o passado e o futuro lado a lado. Porque quando a gente sobe ali na ponte, olhando, a gente vê a balsa lá embaixo.”

Sula explica que “fazer uma obra dessa não é fácil, e ela não é simples. É uma obra complexa”. Foram três anos de desafios técnicos, desapropriações e ajustes. “Os desafios foram muitos, tanto na parte de recurso quanto na execução, mas o governo sempre aportando, nunca faltou recurso, porque era uma prioridade do governador Gladson.”

Ela fala com firmeza sobre o método: “Uma obra dessa é feita por muitas mãos. Não é só licitar e contratar a empresa. Vem a parte de desapropriação, a parte social, toda feita pelo Deracre, com visita às famílias que moravam ali no entorno. Fizemos tudo com cuidado, com carinho, com uma equipe eficiente.”

Ao mencionar o investimento, o tom é de responsabilidade. “O compromisso é com as pessoas. Quando se faz política com seriedade, com comprometimento, as coisas acontecem. E foi o que aconteceu ali com a ponte de Xapuri e também com a de Sena.”

Sobre o papel pessoal nesse processo, Sula sorri. “Eu me sinto honrada e agradecida em fazer parte desse momento para Xapuri. Agradeço ao governador por ter me dado essa oportunidade. Sei cada detalhe, sei o quanto de suor de todos foi empregado nessa obra.”

Do alto da ponte, o olhar alcança mais longe, segue o curso do rio e se perde na curva da estrada nova. A Sibéria se liga ao asfalto da Variante, atravessando o centro de Xapuri, como se o concreto chamasse o caminho adiante. As duas obras se encontram no mesmo gesto: o de romper o isolamento e costurar a cidade ao resto do Acre. Juntas, refazem o eixo de uma nova Xapuri.

O dia segue e o sol corre sozinho sobre o asfalto novo da Estrada da Variante, onde o cheiro é de mais promessa cumprida. À beira da pista, o vice-prefeito, e morador histórico da região, Vânio Miranda olha para o horizonte e fala como quem revisita a própria infância: “A gente veio de Rondônia em 1988, cheio de sonho, e minha mãe preocupada: ‘Como é que os meninos vão estudar?’. Como estava na terraplanagem, a gente veio todo animado. Vamos para a escola tranquilo, de bicicleta, de carro. E aí, no decorrer de algum tempo para, isso não foi mais se tornando realidade. A estrada foi se acabando e o asfalto que era pra ser verdade, se acabou. Não existiu asfalto.”

A voz de Vânio embarga quando lembra dos primeiros tempos. “A gente acordava quatro da manhã, meu pai ia tirar leite, e nós seguíamos pra escola. Muitas vezes a bicicleta atolava, o pneu enchia de lama e a gente deixava na beira da estrada pra chegar a pé. Era assim todo dia.”

A Variante foi durante décadas sinônimo de isolamento. “Essa estrada aqui já tirou mais de cinco mil litros de leite por dia. Tinha gente que tirava mil litros sozinho”, conta Vânio, agora vice-prefeito e empresário. “Meu pai, Toninho Miranda, tirava setecentos. A produção era forte, mas a falta de estrada acabou com tudo. As bueiras quebravam, o caminhão da feira, que passava toda sexta-feira, atolava. A gente ia com o trator puxar.”

Ele respira fundo e diz o que muitos moradores pensam: “Foram mais de trinta anos de espera. Muita gente morreu sem ver esse asfalto. Meu pai, meus tios, Dona Isaura, o Zezinho Baiano. Mas o sonho ficou. Agora tá aqui, pronto. A estrada voltou a viver. Tem caminhão da feira toda sexta, ônibus passando, táxi passando. A gente nunca imaginou ver táxi passando na porta.”

Do outro lado da cidade, o taxista Jamilson Rodrigues, 30 anos de praça, fala do mesmo asfalto com outro olhar, de quem vive na estrada todos os dias. “Rapaz, isso aqui é uma benção. Quando cheguei em Xapuri, a estrada era de barro puro. A gente atolava tanto. A Variante era um desejo de muita gente, do seu Toninho Miranda, Zezé Miranda, era um sonho, mas infelizmente eles não alcançaram. Agora, com ela pronta, a gente economiza tempo, gasolina e vida. Dá uns oito, dez minutos a menos por corrida, e a viagem pra Rio Branco ficou mais leve.”


A Estrada da Variante, com 17,5 km, liga o centro de Xapuri à BR-317, criando uma rota alternativa à antiga Estrada da Borracha. A obra foi executada pelo Governo do Estado, por meio do Deracre, com investimento de aproximadamente R$ 30 milhões, oriundos de recursos estaduais e de emenda parlamentar federal.


A estrada que cortava a esperança agora costura a cidade de novo. E Sula Ximenes sabe o peso que carrega. “A Variante foi uma das obras mais difíceis que já enfrentamos. Mais até que a ponte da Sibéria”, diz, com a serenidade de quem acompanhou cada metro deste sonho. “Foram 17 quilômetros com desapropriações, galerias, trechos instáveis. Em certo momento, faltou recurso, porque era uma emenda parlamentar, e depois conseguiu ser regularizado. Mas o governador Gladson Cameli manteve o compromisso.”

Sula fala com a precisão de quem viu o projeto sair do papel. “A maior dificuldade é essa, transformar um sonho em obra. As pessoas olham de fora e acham que é só colocar máquina. Mas quem está dentro sabe o processo: licitação, adequação, análise técnica, financeira. A estrada demorou, mas ficou pronta, e o resultado tá aí: conecta Xapuri ao desenvolvimento, encurta o caminho pra Rio Branco e devolve dignidade a quem viveu décadas no barro.”

Ao longo da via, há sinais de renascimento. Vânio conta que os produtores voltaram a acreditar. “O leite está voltando. Tem gente que tinha parado e voltou a tirar leite. Estão plantando de novo: mandioca, banana, abacaxi, jambu. Toda sexta o caminhão chega no mercado de Xapuri carregado da produção da Variante. É renda, é movimento. Essa estrada é vida pra nossa cidade.”

Ele fala devagar, como quem mede as palavras para que fiquem gravadas. “Deus coloca a gente no lugar certo, na hora certa. Eu cresci nessa estrada, e hoje sou vice-prefeito da cidade, com a estrada levando o nome do meu pai. É uma responsabilidade grande, mas é gratificante. O prefeito Maxwell Maia é um irmão que eu ganhei. É um cara que pensa grande, e junto com o governador Gladson e a vice-governadora Mailza, a gente conseguiu fazer o que parecia impossível.”

No caminho de volta, o carro desliza sobre o asfalto novo. Vânio olha o movimento dos veículos e conclui: “Você tá lá na capital, vem à Brasileia, mas não ia vir em Xapuri, porque ficava, como o ditado popular, de manga, e hoje as pessoas veem uma rotatória daquela, já entram na Variante, e com isso traz o movimento para a nossa cidade.”

A história de Vânio e da família Miranda é, em si, um pedaço da própria estrada. Foram décadas de trabalho e persistência, sempre com os pés no barro e o olhar adiante: “Meu pai sempre dizia: ‘Faça algo por alguém. Faça o melhor, cada dia mais’.”

O rio e a estrada agora se encontram na mesma linha de horizonte. A ponte da Sibéria e a Estrada da Variante se constroem como gestos que mudam o destino de uma cidade. Xapuri, que aprendeu a viver entre margens e atoleiros, volta a se reconhecer inteira. O concreto e o asfalto costuram a história interrompida por décadas de espera, ligando o centro à Sibéria, o campo à cidade, o passado ao que ainda está por vir.

A nova Xapuri nasce dessas conexões, da persistência de quem acreditou e da decisão de um governo que fez chegar o investimento certo até onde o mapa costuma esquecer. A ponte e a estrada transformam a paisagem e, com ela, a vida. E quando o sol reflete sobre o rio e sobre o asfalto, é possível ver que a cidade, enfim, se completou, unida, firme, e voltada para o futuro.