Connect with us

Cantor, compositor, comunicador e psicólogo, Anderson Liguth carrega no corpo e na voz a força das tradições afro-brasileiras

No Dia da Consciência Negra, o Acre reencontra uma de suas vozes mais consistentes: Anderson Liguth, cantor, compositor, pandeirista, radialista, psicólogo e militante da cultura afro-brasileira. Sua trajetória reúne música, espiritualidade, comunicação, pesquisa e vivência comunitária, mas sobretudo reúne história, a história do povo negro que construiu este país, que resiste todos os dias e que encontra no samba um território de identidade e sobrevivência. Trocamos uma ideia que não poderia seguir outro caminho: uma conversa profunda, generosa e cheia de ancestralidade. Nela, Anderson revisita suas origens, seus mestres, suas descobertas e a potência simbólica do 20 de Novembro.

Ele nasceu em um ambiente familiar amplo, amoroso e ruidoso do jeito mais bonito: o barulho da família grande misturado aos sons de samba, de cozinha, de festa e de convivência. Cresceu na Mangabeira, cercado pelos avós, pelas tias e tios, pelas primas e primos e pela presença marcante de um comércio que atravessou gerações, fundado ainda na década de 1970 por seu avô. Desse território afetivo veio também a música. O pai, percussionista e compositor; a mãe, fã de Clara Nunes e de sambas que ecoavam pela casa; a vizinhança, que se encontrava em rodas de samba onde o menino Anderson já percebia que ali havia algo maior. “Foi amor à primeira vista”, recorda. O pandeiro veio como destino. E o samba, como futuro.

Formado inicialmente dentro do catolicismo, ele conta que a espiritualidade afro-brasileira entrou em seu caminho exatamente pela porta do samba. Ao se aprofundar nas letras, nas histórias e nos nomes que surgiam nas canções, Ogum, Xangô, Iansã, Zé Pelintra, percebeu que aquela musicalidade era linguagem ancestral, memória viva de um povo que criou, no Brasil, um dos mais importantes patrimônios culturais do mundo. Foi através de mestres como o historiador e ogan Arimatéia e o ogan Ed que Liguth compreendeu a dimensão histórica e religiosa do samba e das tradições afro-brasileiras. Ali se reconectou com algo que, segundo ele, sua família não viveu diretamente, mas que encontrou nele um terreno fértil: a espiritualidade como força de mundo, como ampliação de consciência e como elemento inseparável da cultura negra.

Artista, psicólogo e comunicador, ele diz que seu olhar sobre o mundo é moldado por esse entrelaçamento de referências: os valores familiares de amor e solidariedade, a prática do samba enquanto linguagem coletiva e filosófica, a vivência afro-brasileira e a formação acadêmica que lhe deu instrumentos para compreender pessoas e territórios. “Tudo foi se somando”, afirma. O samba ampliou sua visão de mundo e o conduziu a um lugar de pertencimento, identidade e responsabilidade.

No campo artístico, suas composições refletem essa travessia. Uma das músicas que mais o representam é “PAO”, De saudade se faz um samba, parceria com Alexandre Nunes Nobre e Julie Messias. A canção nasce do sagrado: o paó é o som das palmas que, junto aos atabaques, desperta os ancestrais. Na letra, as referências negras, familiares e culturais se misturam. É autobiografia poética, e é marco de sua trajetória.

“O samba é uma ferramenta de transformação”

A comunicação chegou pela porta natural da pesquisa musical. Apaixonado por mergulhar na história do samba, de seus compositores e de seus movimentos, Anderson foi convidado a integrar a Rádio Aldeia primeiro como voluntário e, depois, como comunicador nos programas jornalísticos. Ali aprendeu técnica, narrativa e responsabilidade. Ali formou o comunicador que hoje se reconhece como tal. Foi também a partir dessa vivência que participou de movimentos fundamentais na comunicação e na cultura do Acre, como o programa Quilombo Livre, idealizado por Ogan Arimatéia e Ogan Ed, dedicado à cultura negra, à história afro-brasileira, à religião de matriz africana, à música, à educação e à luta política do movimento negro.

Sua militância, entretanto, não se restringiu aos microfones. Anderson foi um dos idealizadores do Clube do Samba, movimento que transformou a cidade ao reunir músicos, pesquisadores, lideranças comunitárias e jovens artistas em rodas, encontros e oficinas. “Era uma confraria do conhecimento e da tradição”, lembra. Dali nasceram ações de formação, rodas temáticas, filantropia e o impulsionamento de novas vozes, como o grupo Moças do Samba, hoje presente e ativo na cena acreana. Anos depois, quando retornou a Rio Branco após uma temporada no interior, ajudou a fundar o Samba Popular Livre, que ocupou ruas e praças com samba gratuito, feiras solidárias e cultura comunitária.

Para Anderson, o samba é mais do que ritmo: é estrutura social. “O samba é um organismo vivo”, diz. É onde famílias vivem, onde jovens encontram caminhos, onde empreendedores circulam, onde tradições são passadas adiante. É, sobretudo, ferramenta política. A música, para ele, tem papel fundamental na denúncia das desigualdades e na reivindicação de direitos. Ele cita sambas-enredo como o da Mangueira, “História para ninar gente grande”, que rasgam o véu da história oficial e expõem o que foi silenciado: o sangue negro, a luta negra, o Brasil construído pelos que nunca foram celebrados.

É por isso que o Dia 20 de Novembro, para ele, é uma data de luta, e não de festa. Anderson afirma que, apesar dos avanços, o racismo segue modelando a sociedade brasileira. O povo negro, embora seja maioria numérica, segue sendo minoria nos espaços de poder, nas profissões prestigiadas, na política. “É preciso letramento racial, consciência de classe, organização, movimento. É preciso nomear o racismo e enfrentá-lo”, declara. A data, segundo ele, é memória dos que vieram antes, das conquistas e das perdas, mas também é chamado ao presente: chamado à responsabilidade coletiva, à resistência e à continuidade da luta.

“20 de Novembro não é comemoração, é resistência.”

Anderson deseja que o 20 de Novembro seja vivido como consciência ativa. Que se honre quem abriu caminhos. Que a luta ancestral siga sendo trilha para as novas gerações. Que a música, a arte e a cultura negra continuem a despertar o que há de mais profundo: identidade, dignidade, força e vida.

No Acre, no Brasil e no mundo, o samba segue ecoando como ferramenta de resistência e como voz do povo negro. E, pela palavra e pela caminhada de Anderson Martins, essa certeza se faz ainda mais forte.

Realização Bari Comunicação – Texto: Alexandre N Nobre Fotos: Arison Jardim


Confira a entrevista completa >>> Anderson Liguth