Em sua coluna na Revista Opera, Frei Betto analisou a primeira exortação apostólica do Papa Leão XIV, intitulada Dilexi Te (“Eu te amei”), publicada em outubro de 2025. O documento papal, segundo o frade dominicano, reafirma os princípios centrais da Teologia da Libertação ao associar fé, justiça social e compromisso com os pobres, posicionando-se contra a ideia de que a pobreza resulta de mérito individual ou de escolhas pessoais.
O papa declara no texto que “os pobres não existem por acaso ou por um cego e amargo destino. Muito menos a pobreza é uma escolha para a maioria deles”, criticando o discurso meritocrático que reduz desigualdades estruturais a falhas pessoais. A exortação defende que a fé cristã deve estar ligada ao amor concreto e à transformação das estruturas sociais que geram exclusão, retomando a tradição latino-americana expressa nas conferências de Medellín e Puebla, onde se formulou a opção preferencial pelos pobres.
Frei Betto destaca que o texto papal dialoga diretamente com a realidade brasileira, marcada por desigualdade, racismo estrutural, patriarcado e degradação ambiental. Para ele, a exortação reforça a ideia de que a evangelização exige compromisso político e social. “Dilexi Te rompe com a falsa dicotomia entre fé e política ao afirmar que não se pode separar a fé do amor pelos pobres”, escreve o autor, lembrando que a pobreza no país “tem rosto, cor e território”.
O documento também reconhece o papel dos movimentos sociais como expressões da busca por justiça, citando os esforços populares contra as causas estruturais da pobreza. Em trecho reproduzido por Frei Betto, o papa afirma: “A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo, é uma forma de fazer história e é isto que os movimentos populares fazem”.
A análise ressalta que o texto pontifício legitima a linguagem e a prática da Teologia da Libertação, ao reconhecer a presença de Deus entre os pobres e a necessidade de ações concretas de transformação social. Frei Betto conclui que Dilexi Te “chega como reforço e confirmação da Teologia da Libertação, lembrando que o amor de Deus é libertador e denuncia as causas da injustiça”.
Foto: Catholic Church England and Wales /Mazur/ cbcew.org.uk
O Brasil investe cerca de 5% do PIB em educação, um percentual que impressiona. À primeira vista, parece um esforço exemplar. Mas, quando dividimos esse volume de recursos pelo número de estudantes, o resultado é um dos menores investimentos por aluno da OCDE. A conta não fecha porque o problema não está apenas no tamanho do bolo, mas em como e onde o bolo é repartido.
O percentual do PIB é uma fotografia política: mostra o grau de prioridade, mas não revela qualidade nem eficiência. Países diferentes podem aplicar o mesmo percentual do PIB e obter resultados completamente distintos. Depende de como organizam seus sistemas e de quanto garantem equidade e continuidade nas políticas públicas.
Outro critério é comparar o Brasil com países de características semelhantes, como Chile, México ou Colômbia. Essa análise é mais justa, pois ajusta pela capacidade fiscal e pelo tamanho da população. Mas há um risco: quando todos têm problemas parecidos, a comparação pode confortar na mediocridade. A referência correta é importante, mas a direção da mudança é o que realmente importa.
Comparar o gasto por aluno do Brasil com o dos países de melhor desempenho da OCDE pode ser inspirador, desde que não seja ingênuo. Finlândia, Canadá e Coreia não chegaram lá apenas porque gastaram mais. Chegaram lá também porque planejaram melhor. Transformaram investimento em capacidade pública, em gestão e em compromisso de Estado.
O Brasil tentou enfrentar esse desafio com o Custo Aluno-Qualidade (CAQ). A ideia nasceu como tentativa de definir o investimento mínimo necessário para garantir um padrão básico de qualidade. Mas parte da formulação acabou presa a uma visão normativa e homogênea, que trata a qualidade como se fosse um preço fixo, igual em todo o território nacional.
Minha leitura é diferente. O CAQ não deve ser um número, mas um processo permanente de pactuação federativa, que considere as desigualdades territoriais e a capacidade de gestão local. Um instrumento vivo, que ajude a converter o gasto em aprendizado e equidade, e não um índice estático a ser replicado de forma burocrática.
A pergunta que deveríamos fazer não é “quanto investir?”, mas “para quê e com que Estado”. Isto é, com que capacidade pública, com que instituições, com que projeto de país.
Um investimento é razoável quando é compatível com a riqueza do país, comparável ao de seus pares e suficiente para garantir equidade e aprendizagem. Mas só faz sentido se for capaz de transformar recursos em capacidade pública.
A educação de qualidade não se compra. Nós, como governo e sociedade, a construímos. Mais do que isso: o custo da qualidade não está no orçamento; está na inteligência do planejamento, na coerência das políticas e na persistência das instituições.
Enquanto não entendermos isso, continuaremos gastando muito e investindo pouco.
Sobre o autor: Binho Marques, 62 anos, é ex-governador do Acre (2007-2010). Historiador e mestre em educação pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Atuou como professor, gestor público, secretário de Educação (municipal, estadual e no MEC/SASE), consultor do Unicef e parceiro de Chico Mendes em comunidades extrativistas. Hoje integra o Conselhão e atua na tmc1 – escola de gestão.
Temos motivos de sobra para celebrar. A aprovação do SNE (Sistema Nacional de Educação) é uma conquista histórica, que coroa quase 1 século de lutas – das vozes pioneiras de 1932 às centenas de gestoras, professores e militantes que, em diferentes tempos, acreditaram que o Brasil precisava de um sistema nacional capaz de garantir unidade na diversidade.
Mas a festa não pode nos distrair. O SNE nasce como um sistema de sistemas – um organismo vivo, federativo, descentralizado, de múltiplas camadas. Por isso, será ainda mais complexo que o SUS (Sistema Único de Saúde), ao qual tem sido constantemente comparado. A analogia é justa, mas não literal.
O SUS é hierárquico e quase prescritivo. A educação, por essência, é mais plural e processual. O que o SNE compartilha com o SUS não é a forma, mas o propósito: a defesa do bem público, o compromisso com a universalidade, a coragem de transformar um direito em política concreta.
O SUS é o irmão mais velho, que enfrentou os caminhos mais duros. O SNE é o caçula da federação cooperativa – chega mais tarde, mas traz a mesma vocação de justiça e solidariedade.
No entanto, o maior desafio, definidor da viabilidade do sistema, ainda está à frente: definir o que é padrão de qualidade de sua constituição sem cair na armadilha da qualidade padrão. A diferença parece sutil, mas é profunda.
O padrão de qualidade é o piso de direitos que a Constituição garante a toda criança e jovem, onde quer que vivam. A qualidade padrão é o contrário disso: um molde único, que ignora culturas, territórios e contextos.
Um país tão diverso quanto o Brasil não pode ser educado sob uma régua só. A ideia de “padrão de qualidade” já foi capturada por simplificações perigosas. Quando o CAQ (Custo Aluno Qualidade) surgiu, era uma equação para entender que qualidade se podia alcançar com os recursos disponíveis. Depois, virou o oposto: quanto precisamos gastar para alcançar uma qualidade ideal.
A mudança ajudou a enfrentar o subfinanciamento, mas também congelou a ação e a inovação entre os gestores dos sistemas subnacionais – como se a qualidade só existisse quando o dinheiro estivesse todo garantido. O SNE precisa romper com esse determinismo. Financiamento e qualidade caminham juntos, mas não se reduzem um ao outro.
O desafio real é articular custo, equidade e diversidade – equilibrar justiça distributiva e liberdade pedagógica. Isso significa usar o SNE para organizar todas as formas de complementação supletiva da União e dos Estados em torno de um princípio comum: justiça educacional com equidade.
O Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) foi um avanço, mas as desigualdades permanecem imensas. Se o SNE não orientar os fluxos de financiamento e os critérios de redistribuição, será só um novo nome para velhos desequilíbrios.
Diferentemente do que muitos dizem, o SNE não é o “SUS da educação”. Ainda bem. Educar é muito mais do que prestar um serviço: é formar pessoas, reconstruir laços, produzir sentido coletivo e fortalecer a democracia, com pessoas altivas, autônomas, produtivas e mais felizes.
O SNE precisa aprender com o SUS em seus propósitos, mas não em sua forma. A educação não cabe em protocolos; precisa de princípios, não de checklists.
A aprovação do SNE é um passo monumental, mas é só o início. A etapa mais difícil virá em seguida: transformar uma lei em prática federativa, um texto em política viva, uma ideia em sistema real. E, sobretudo, garantir que o “padrão nacional de qualidade” se traduza em diversos modelos com a mesma dignidade – escolas diferentes, mas igualmente boas; territórios distintos, mas igualmente respeitados.
Se o SUS nos ensinou a cuidar da vida, o SNE nos desafia a ensinar a aprender nesse mundo dinâmico em profundas transformações. Cabe à educação também cuidar dos nossos sonhos. Que o Brasil volte a sonhar.
Saibamos aprender com o irmão mais velho, sem perder o brilho do caçula.
Sobre o autor: Binho Marques, 62 anos, é ex-governador do Acre (2007-2010). Historiador e mestre em educação pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Atuou como professor, gestor público, secretário de Educação (municipal, estadual e no MEC/SASE), consultor do Unicef e parceiro de Chico Mendes em comunidades extrativistas. Hoje integra o Conselhão e atua na tmc1 – escola de gestão.
O Brasil está às vésperas de aprovar o Sistema Nacional de Educação (SNE). O debate é intenso e, muitas vezes, confuso. Uma comparação recorrente é com o SUS. Mas a analogia é enganosa. O SUS é único. O SNE será um sistema de sistemas, como me disse o ex-deputado Carlos Abicalil. Essa diferença é decisiva. Educação não pode ser tratada como saúde. A diversidade brasileira e a essência da educação exigem outro olhar.
O ponto central é a definição de qualidade. Fala-se muito no Custo Aluno Qualidade, o CAQ. Mas, afinal, o que é o CAQ? Ainda não existe definição oficial. Para alguns, basta listar insumos nacionais. Para outros, cada rede deve definir seus padrões. O risco é cair em extremos: ou uma lista rígida e nacional, ou um vale-tudo local. Nenhum dos dois serve. Precisamos de equilíbrio.
Esse debate não é novo. Em 1932, os Pioneiros da Educação defendiam uma escola única, mas não uniforme. A unidade estava nos princípios: escola pública, gratuita, laica e obrigatória. A diversidade aparecia nos modelos. Essa intuição sobrevive. Na Constituição de 1988, está escrito: a educação deve garantir padrão mínimo de qualidade em todo o país. Unidade de direitos. Diversidade de meios.
Nos anos 1990, pesquisadores do IPEA tratavam o CAQ como cálculo simples: com o recurso disponível, que qualidade é possível? Nos anos 2000, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação inverteu a lógica: qual o custo necessário para alcançar qualidade? Essa virada enfrentou o subfinanciamento, mas trouxe também o risco de checklist e judicialização. Diversidade e inovação, zero. O Parecer CNE/CEB nº 8/2010, mesmo revogado, cristalizou essa visão.
Hoje, o desafio é maior. Como lembrou Milton Santos, o território brasileiro é um mosaico. Não há como impor um único modelo de escola para realidades tão diferentes. O que se pode fazer é fixar princípios nacionais — equidade, infraestrutura adequada, currículo relevante e respeito às identidades e culturas. A partir daí, cada território define como aplicar. Cabe aos órgãos de controle avaliar se os meios são adequados aos princípios e recursos e se os resultados garantem o direito. Cabe ao MEC criar sistemas de avaliação coerentes. Responsabilidades e responsabilização.
O novo Fundeb abriu caminho. Incorporou à Constituição o conceito de VAAT (Valor Aluno Ano Total), que permite equilibrar as visões dominantes de CAQ. A transparência de quanto cada ente federativo tem para financiar a educação básica permitirá ao INEP e à Comissão Intergovernamental definir um padrão de qualidade sem impor uma qualidade padrão. Isso pode reduzir desigualdades e, ao mesmo tempo, preservar a autonomia pedagógica das redes. Como lembra Zara Figueiredo, equidade não é igualar tudo. É garantir que as diferenças não se transformem em injustiças.
Este é o nosso verdadeiro desafio: ter escolas de qualidade sem aprisioná-las a tabelas de insumos. A fórmula para enfrentar o dilema precisa ser simples e complexa: unidade de direitos, diversidade de meios. Nenhum estudante pode ficar abaixo do piso constitucional. Mas cada rede deve encontrar seus próprios caminhos.
A imagem de uma escola padrão e uniforme não pode retratar a educação brasileira do século XXI. Muito menos um arquipélago de desigualdades, com ilhas de excelência e oceanos de exclusão. A educação nacional deve ter um padrão de qualidade expresso em escolas diversas, alinhadas por princípios comuns. Só assim a educação será digna, equitativa e transformadora.
Binho Marques é ex-governador pelo PT do Acre e atualmente é membro honorífico do Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed) e membro do Conselho Deliberativo do Todos pela Educação.