A conversão de porções da floresta amazônica em áreas de agricultura itinerante e de pastagem para criação de gado reduz a diversidade de formigas, que por sua vez passam a predar mais insetos. Esse processo, no entanto, ocorre de forma mais intensa no caso dos pastos. A conclusão é de um estudo realizado por um grupo de nove pesquisadores das universidades Federal de Lavras (UFLA) e Federal do Acre (Ufac), e estão em um artigo publicado na revista Insect Conservation and Diverisity, periódico científico referência internacional em entomologia, ramo da zoologia que estuda os insetos.
“Formigas são ótimas bioindicadoras de impactos ambientais. Bioindicadores são organismos que podem ser utilizados para avaliar a qualidade dos ambientes. Eles indicam como está a saúde dos ecossistemas. Isso se deve à alta sensibilidade das formigas frente as alterações nos ecossistemas e à grande diversidade de suas espécies. Só no Brasil, existem cerca de 1,5 mil [espécies]. Elas realizam importantes funções ecossistêmicas, como predação de insetos, dispersão de sementes, revolvimento do solo e defesa de plantas contra herbívoros”, explica Icaro Wilker, pesquisador da UFLA, que liderou o estudo.
A agricultura itinerante também é conhecida como roçado ou corte-e-queima. Trata-se de uma prática comum em reservas extrativistas, unidades de conservação destinadas à proteção do meio ambiente e dos meios de vida de populações tradicionais que sobrevivem do extrativismo e, complementarmente, do cultivo de subsistência e da criação de animais de pequeno porte.
“Na agricultura itinerante, o ambiente natural é cortado e queimado. Durante 4 ou 5 anos, são cultivados diversos tipos de culturas, como arroz, feijão, mandioca e pimenta. Quando as áreas são enfim abandonadas, ocorre a regeneração da floresta secundária. Mas devido ao baixo ganho econômico com essas atividades, as áreas de agricultura itinerante, de onde tradicionalmente as populações locais produzem alimento, e as áreas de floresta, de onde originalmente retiravam seu sustento, vêm sendo transformadas em áreas de pastagens para criação de gado”, explica Icaro.
Para realizar o estudo, foi feito um trabalho de campo na Reserva Extrativista Chico Mendes, criada em 1990, no Acre. A imersão ocorreu em 2019. Nesse mesmo ano, dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontaram que o desmatamento ocorrido dentro da unidade de conservação havia crescido 203% na comparação com 2018.
Ao todo, 255 espécies de formigas foram observadas. Algumas se mostraram mais sensíveis à perda de vegetação nativa e só foram encontradas nas florestas, estando ausentes tanto em áreas de agricultura itinerante como em áreas de pastagem. “Na Floresta Amazônica, a maioria delas está adaptada para sobreviver em um ambiente com baixa incidência solar e mudanças mais amenas de temperatura e umidade. Quando a cobertura florestal é perdida, a incidência solar aumenta e a temperatura e umidade do local muda drasticamente. Há maior variação, ficando mais quente durante o dia e mais frio à noite. São filtros que afetam a sobrevivência de boa parte das espécies”, disse Icaro.
O estudo revelou que as formigas remanescentes passam a predar outros insetos com mais frequência. Segundo os pesquisadores, isso ocorre provavelmente em resposta às mudanças na disponibilidade de recursos naturais – como diminuição das fontes de alimento e dos locais para construírem ninhos – e às alterações nas condições ambientais tais como temperatura e umidade.
Apesar de observarem que impactos do mesmo tipo ocorrem tanto pela prática de agricultura itinerante como nas áreas de pastagem, os pesquisadores observaram que a intensidade dos efeitos é bem distinta. Ao comparar os dois ambientes, eles apontam que os locais onde ocorrem o cultivo itinerante é mais heterogêneo e diversificado em recursos, o que lhe permite abrigar mais espécies de formigas. Nesse sentido, o estudo conclui que sua substituição por pastos traz prejuízos para a biodiversidade.
“O abandono das áreas de agricultura para formação de floresta secundária pode gerar um mosaico de áreas em diferentes estágios de regeneração, permitindo a coexistência de variados ecossistemas e auxiliando na conservação da biodiversidade da região. Já em relação às formigas, apesar da perda em espécies nesses ambientes, o aumento da predação de insetos pode favorecer os pequenos produtores, principalmente nesse sistema com baixo uso de produtos químicos”, acrescenta Icaro.
Durante a abertura da Expoacre Juruá 2025, realizada no dia 1º de julho em Cruzeiro do Sul, o presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Acre (FAEAC), Assuero Veronez, destacou que a carne bovina se tornou o principal produto da pauta de exportações do estado. Segundo ele, essa mudança representa um avanço na economia rural da região, especialmente no Vale do Juruá.
“A pauta de exportação do Acre tinha a madeira e a castanha como principais produtos e agora é a carne”, afirmou Veronez. Ele também ressaltou a importância da tecnologia e da qualificação técnica para sustentar o crescimento do setor, enfatizando que o mercado exige “qualidade e produção em escala”.
Veronez defendeu a adoção de políticas públicas e melhorias estruturais, como a regularização fundiária, que considera um entrave histórico. “A falta de regularização fundiária impede o acesso ao crédito, dificulta investimentos e trava o crescimento da produção”, disse.
No entanto, enquanto o setor comemora o avanço nas exportações, especialistas chamam atenção para os impactos ambientais associados à expansão da pecuária. Em entrevista publicada em 4 de julho, o pesquisador Evandro José, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), apontou a pecuária como principal responsável por impactos negativos nas margens do Rio Acre, especialmente no trecho do Juruá.
Segundo o pesquisador, fazendas estariam promovendo desmatamento e captação irregular de água ao longo do rio. “Está na cara que é um exagero. […] Fazendas ao longo do rio, a cada vez que têm desmatado a floresta, também estão captando, ilegalmente, a água que deve vir para o rio”, afirmou. Ele defende que estudos técnicos com uso de geotecnologias podem comprovar os danos causados ao equilíbrio hídrico da região.
Evandro destacou ainda que, ao contrário da agricultura familiar, que opera com métodos menos intensivos, a pecuária demanda maior uso de recursos naturais e apresenta maior impacto ambiental. “É mais a pecuária, né, do que a agrícola”, afirmou.
Os dados e as falas mostram um cenário de contradição entre o avanço econômico do setor pecuarista e os desafios ambientais que ele impõe à região. Enquanto produtores defendem maior apoio público e infraestrutura para expandir a atividade, pesquisadores alertam para a necessidade de regulação e fiscalização ambiental para evitar o comprometimento dos ecossistemas locais.
Durante o Seminário Internacional TXAI Amazônia, realizado em Rio Branco entre os dias 25 e 28 de junho, a gestora ambiental Magaly Medeiros compartilhou sua visão sobre os caminhos da bioeconomia e o papel estratégico do Acre nas políticas públicas para a floresta em pé. Com longa trajetória no setor ambiental do Estado, Magaly atuou diretamente na construção e implementação do Sistema de Incentivos a Serviços Ambientais (SISA) e do programa REM Acre, hoje referência replicada em outros estados como o Mato Grosso.
Atualmente à frente da Aripua Consultoria Socioambiental, empresa que atua com projetos ligados à sociobiodiversidade, Magaly participou do seminário como convidada e avaliou os debates com foco na valorização dos saberes tradicionais. “A principal mensagem que levo do TXAI é que a bioeconomia precisa ter um olhar atento para os saberes e a ciência dos povos indígenas e das comunidades tradicionais. A floresta em pé não se sustenta sem políticas públicas consistentes”, afirmou.
Para Magaly, o seminário reforçou o protagonismo cultural e político dos povos da floresta. “Mostrou o valor da floresta em pé e evidenciou o protagonismo dos povos do Acre nesse processo”, destacou. Segundo ela, eventos como o TXAI são fundamentais para fomentar o pensamento crítico, especialmente ao criar espaços de escuta e troca entre diferentes visões e experiências: “O seminário propicia um espaço de diálogo para discutir e debater diferentes pontos de vista.”
Ao avaliar a relação entre conservação ambiental e dimensões sociais e culturais, Magaly apontou que o seminário abordou a biodiversidade de forma transversal, com maior ênfase no desenvolvimento da bioeconomia ancorado na ciência e na tecnologia, mas sem deixar de lado os conhecimentos dos jovens e dos povos tradicionais.
Magaly também prestigiou – Apresentação do Projeto Mamgap do povo Zoró apoiado pelo REM MT – Sala Casos de Sucesso / Foto: Cedida
Na entrevista, ela também ressaltou o papel do Estado na formulação de políticas sustentáveis. “O papel do Estado é essencial na construção de soluções sustentáveis. A experiência do REM Acre, por exemplo, foi fundamental para que o Mato Grosso pudesse replicar essa política com o REM MT. Hoje, essa iniciativa está avançando em projetos voltados à autonomia dos povos indígenas e ao fortalecimento das cadeias de valor”, explicou.
O TXAI Amazônia reuniu lideranças indígenas, gestores públicos, pesquisadores e representantes do setor privado para discutir caminhos viáveis para a bioeconomia na Amazônia Legal. Com foco nos saberes tradicionais, inovação e valorização dos territórios, o evento se consolida como espaço estratégico para pensar políticas de desenvolvimento regional baseadas na sociobiodiversidade.
No terceiro dia do Seminário Internacional Txai Amazônia, realizado no espaço e_Amazônia da Universidade Federal do Acre, o painel Uso da terra com sabedoria como base para a gestão territorial de terras protegidas e mitigação às mudanças climáticas propôs um diálogo profundo entre ciência, ancestralidade e política pública. Sob mediação do pesquisador Eufran Amaral (Embrapa), a roda de conversa reuniu o coordenador da Funai Jefferson Fernandes, o antropólogo indígena Daniel Iberê, o professor Valdinar Melo (UFRR) e a ambientalista Julie Messias, para responder a uma questão central: como o uso do território pode ser motor de transformação diante da emergência climática?
Jefferson Fernandes: política indigenista e instrumentos de gestão
Abrindo o painel, Jefferson Fernandes apresentou a estrutura e os desafios enfrentados pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), autarquia vinculada ao Ministério dos Povos Indígenas. Ele explicou que a Funai atua em cinco frentes principais: proteção e promoção dos direitos indígenas, administração do patrimônio indígena, produção de estudos e pesquisas, monitoramento de políticas públicas diferenciadas e fomento ao etnodesenvolvimento. Com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, disse Jefferson, os povos originários passaram a ter protagonismo na formulação das políticas que os afetam.
Um dos pontos centrais da fala foi a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), criada por decreto em 2012 e ainda em luta para ser transformada em lei. A política, segundo ele, é estratégica para assegurar a conservação, a sustentabilidade e o planejamento dos territórios indígenas — não como instrumentos burocráticos, mas como “planos de vida” construídos pelas próprias comunidades, respeitando seus tempos e saberes. Fernandes destacou que, apesar do aumento de recursos em decorrência da ADPF 709 (medida do STF durante a pandemia), o orçamento da Funai segue insuficiente para as múltiplas demandas da Amazônia. “Não há gestão de território sem demarcação. Sem terra garantida, não há política pública eficaz”, alertou.
Daniel Iberê: o mundo que insiste em replantar o mundo
A fala mais simbólica e comovente veio de Daniel Iberê, indígena Mbyá Guarani e antropólogo, que costurou imagens poéticas com críticas contundentes à exclusão dos povos indígenas dos processos de decisão. “Desde que a bota colonial pisou pela primeira vez o nosso solo, começou o nosso desviver”, afirmou. Para Iberê, não é possível falar de sabedoria no uso da terra sem compreender que os territórios são vivos, repletos de espiritualidade, história e afetos. Ele criticou a forma como licenças ambientais ignoram a presença dos espíritos dos lugares e ressaltou que os povos indígenas não são convidados a deliberar sobre as políticas que lhes dizem respeito.
Ao questionar a lógica da monocultura, da mineração e da mercantilização da natureza, Iberê alertou que a febre da Terra, nomeada como “emergência climática” pelo mundo não indígena, já ameaça o futuro de todos. “A pata do boi segue avançando sobre o nosso território. Semeiam desertos em monocultivos e dizem que há paz — uma paz triste de cemitérios.” Em tom de denúncia e esperança, afirmou que os povos originários seguem replantando a diversidade, mesmo diante da violência. “Não somos um galho da ciência europeia. Somos árvores inteiras, somos floresta.”
Valdinar Melo: o solo como fundamento da vida
Na sequência, o professor Valdinar Melo trouxe a perspectiva técnico-científica sobre o solo amazônico e sua diversidade. “Sem solo, não há vida. É do solo que vem a nossa carne, a nossa energia, o nosso pensamento”, disse. Com ampla experiência em pedologia e manejo, Melo alertou para a necessidade urgente de zonamentos mais detalhados, regionais e locais, que considerem os diferentes tipos de solo e clima existentes na Amazônia. “Não se pode planejar o uso da terra sem conhecer profundamente a paisagem.”
Ele defendeu a instalação de estações meteorológicas em comunidades tradicionais para fortalecer o monitoramento climático e a autonomia territorial. Também chamou atenção para o uso de resíduos orgânicos e minerais locais como alternativa à dependência de insumos importados, como o fosfato. Relatou experiências com compostagem de resíduos do açaí, madeira e piscicultura em Roraima, com o objetivo de produzir biofertilizantes adaptados às realidades locais. Em tom crítico, disse que “a chave do passado que nos trouxe até aqui quebrou” e que é preciso pensar em práticas conservacionistas, não como regra geral, mas adaptadas a cada território.
Julie Messias: pontes entre ancestralidade, mercado e políticas públicas
Fechando o painel, Julie Messias, diretora da Aliança Brasil de Soluções Baseadas na Natureza, defendeu a valorização dos chamados “territórios vivos” — espaços onde biodiversidade, modos de vida e saber tradicional formam um ecossistema dinâmico e interdependente. Para ela, os conhecimentos ancestrais já são tecnologias e precisam ser reconhecidos como tal. “Não podemos falar de inovação sem olhar para as práticas que já existem nas comunidades. A bioeconomia começa ali”, afirmou.
Julie trouxe números que ilustram o papel das terras indígenas na proteção da floresta: segundo o MapBiomas, essas áreas têm índice de desmatamento 20 vezes menor do que as propriedades privadas. Ela também destacou os entraves para o financiamento climático, especialmente a dificuldade das comunidades amazônicas em acessar os recursos internacionais. “Mais de 80% das associações estão inadimplentes. Como acessar editais com essa realidade?”, questionou. Por fim, apontou que o mercado de carbono e as políticas públicas precisam ser moldados com base em integridade, justiça climática e inclusão, sob risco de reproduzirem as desigualdades que dizem combater.
Um caminho que passa pelos territórios
O painel reafirmou que a resposta à crise climática não será encontrada apenas nos grandes fóruns internacionais, mas na escuta e no reconhecimento das vozes da floresta. Os caminhos apresentados pelos participantes não são homogêneos, mas convergem na necessidade de respeitar a diversidade biocultural, investir em governança territorial, e equilibrar tecnologia com ancestralidade. A Amazônia, disseram, não precisa ser reinventada — ela precisa ser respeitada. E isso só será possível se os que vivem nela forem os verdadeiros protagonistas de seu futuro.