A Amazônia ocupa um lugar singular no mundo. Reconhecida como o bioma mais biodiverso do planeta, com mais de 40 mil espécies de plantas, 2,5 milhões de espécies animais e cerca de 20% da água doce da terra, ela também é lar de mais de 30 milhões de pessoas. Nesse território vasto e complexo convivem povos indígenas, comunidades tradicionais, agricultores familiares e grandes centros urbanos, todos atravessados por dilemas cotidianos de acesso a direitos básicos como saúde, saneamento, educação e segurança.
Sou mulher, mãe, amazônida, de família extrativista, filha de uma avó parteira de seringal. Mais tarde ocupei cargos públicos no governo federal e estadual, presidi fóruns da Amazônia Legal e chefiei delegações brasileiras em conferências internacionais. Trago comigo a memória ancestral da floresta e a responsabilidade de quem esteve em espaços de decisão global. Essa vivência me ensinou que a Amazônia não pode ser reduzida a um mito. Ela não é apenas o “pulmão do mundo”, nem um santuário intocado que serve apenas ao planeta. É território vivo, de gente que sonha, luta e enfrenta cotidianamente desafios que não podem ser ignorados.
Os números revelam essa contradição. Segundo a PNAD Contínua (IBGE), cerca de 40% da população da Amazônia Legal vive abaixo da linha da pobreza, enquanto menos de 20% tem acesso a saneamento básico em alguns estados. A insegurança alimentar atinge quase metade dos lares rurais e a cobertura de esgoto no Norte mal chega a 14%. Esses dados sociais se sobrepõem à pressão sobre a floresta: em 2023, mais de 85% da perda florestal do Brasil ocorreu na Amazônia. No ciclo mais recente, entre agosto de 2024 e julho de 2025, o desmatamento caiu para 4.495 km², o segundo menor da série histórica, mas os incêndios devastaram 156.000 km², uma área maior que a Grécia. Isso mostra que, embora haja avanços na contenção do corte raso, o uso do fogo segue sendo uma ameaça urgente.
É neste cenário que a verdadeira equação se impõe. Não se trata de escolher entre floresta ou pobreza. Trata-se de garantir conservação com prosperidade. O desmatamento, ao contrário do que muitos acreditaram, não trouxe riqueza. Trouxe degradação, violência e desigualdade. As áreas que mais desmatam são também as de piores índices de desenvolvimento humano, o que evidencia que derrubar a floresta não gera prosperidade duradoura. Mas é igualmente injusto pedir que populações que vivem sem água potável, sem renda, sem escola e sem saúde sejam guardiãs da floresta sem que se lhes assegure dignidade.
A resposta passa por governança multiescalar e pelo fortalecimento de capacidades locais. É preciso coordenação entre municípios, estados, União e instâncias internacionais, mas também é necessário enfrentar a realidade concreta: estradas precárias, logística cara, falta de conectividade, ausência de serviços básicos e pressão do crime organizado. Sem investimentos em infraestrutura, saúde preventiva, educação contextualizada e oportunidades econômicas, nenhum projeto se sustenta.
Aqui o setor privado tem papel estratégico. Não como ator predatório, mas como parceiro de transformação. A bioeconomia, os créditos de carbono e biodiversidade de alta integridade, as cadeias produtivas sustentáveis e os investimentos em inovação podem colocar o Brasil, o país mais biodiverso do mundo, na liderança da economia verde global. Mas isso exige regras claras, segurança jurídica e governança transparente. Empresas, governos e comunidades precisam ser coprodutores de soluções que valorizem os ativos ambientais e gerem benefícios diretos para quem vive na Amazônia.
A floresta só terá futuro se significar também dignidade para as pessoas. Acesso à água potável, saneamento, escolas de qualidade, energia renovável, conectividade e justiça social não são bônus: são requisitos para que a floresta se mantenha em pé. O romantismo que vê a Amazônia apenas como reserva ecológica ignora que ela também é feita de cidades, famílias, histórias e urgências.
Pensar a Amazônia no século XXI significa reconhecer sua complexidade. É floresta e é gente, é local e é global. E só haverá Amazônia para o mundo se houver Amazônia digna para quem nela vive.
*Julie Messias, Diretora Executiva da Aliança Brasil NBS
Julie Messias é especialista em governança climática e inovação para conservação na Amazônia. Foi Secretária de Meio Ambiente do Acre e liderou a Força-Tarefa dos Governadores pelo Clima e Florestas (GCF TF – Brasil). No MMA, conduziu a agenda de biodiversidade e REDD+, e no Acre implementou o Programa REM, primeiro projeto jurisdicional de REDD+ do Brasil. Hoje é Diretora-Executiva da NBS Brazil Alliance.
Foto/Capa: Sérgio vale