A recente crise envolvendo a interrupção do serviço de hemodiálise da Fundação Hospitalar do Acre nos chamou a atenção para um problema bem mais complexo que envolve as terceirizações de serviços públicos, notadamente na área da saúde: em um estado onde a força da máquina pública e o poderio financeiro tem um forte peso nos processos eleitorais, tais terceirizações podem ser a garantia de longevidade de um projeto político. Explico:
Quando um serviço público é terceirizado, ao menos em princípio, o povo não vai atentar para os custos, mas, para o fato de o serviço estar sendo ou não prestado a contento. Assim, mesmo que custe mais caro, a tendência é o povo aprovar os modelos terceirizados de prestação. E os frutos de um suposto sobrepreço, além de elevar os lucros da empresa e de seus proprietários, podem, hipoteticamente, ser destinados ao financiamento de campanhas.
Vejamos o caso do contrato do Governo do Acre com a MedTrauma. Um amigo me reportou que a empresa teria realizado um excelente atendimento com sua avó, já bastante idosa, que havia sofrido uma fratura decorrente de uma queda. Segundo ele, após o atendimento de excelência, os familiares saíram do Pronto Socorro super satisfeitos. Entretanto, o custo disso aos cofres públicos pode ser bastante danoso: a empresa, como todos sabem, está sendo investigada por um dos maiores escândalos de superfaturamento de insumos médicos da história do Acre.
Outro amigo relatou que precisou de uma ressonância magnética em uma das mãos que havia fraturado, cujo valor em uma clínica de imagens particular era de R$ 1.200,00. O mesmo exame, feito na mesma clínica, porém, bancado pelo SUS, custava mais. Ele me reportou ainda que, no mesmo dia, havia outras 22 pessoas para realizar o mesmo exame que ele fizera. Daí podemos imaginar quanto uma clínica particular, que realiza os chamados serviços suplementares para o SUS arrecada em apenas um dia. Ou seja, o que era para ser uma exceção, uma complementação como o próprio termo sugere, tem se tornado a regra geral. Moral da história: tem muita gente ficando podre de rica às custas disso.
Esse tipo de situação advém da falsa ideia de que o serviço público não funciona porque o Estado não é capaz de fazê-lo de modo eficiente, quando, em verdade, a precarização dos serviços públicos é, muitas vezes, proposital, para passar a ideia de que a privatização é a solução. Daí, o privado se apodera dos recursos públicos, faz o serviço de modo satisfatório e consolida a ideia de que deu certo porque foi privatizado. No fim das contas, o empresário acaba obtendo um lucro gigante sobre um serviço público que custaria bem menos se fosse realizado diretamente pelo Estado, que não visa o lucro. O servidor público, que está acomodado, não está enxergando que é o seu trabalho que está em risco. E o povo sequer consegue enxergar as entrelinhas desses processos.
Trata-se, portanto, de uma privatização indireta. E é o ultraliberalismo de quem prega o estado mínimo que dá fundamentação teórica a esse tipo de situação. Sob a justificativa de querer conferir eficiência aos serviços públicos, o que essas pessoas querem mesmo é diminuir, cada vez mais, o orçamento da área social dos governos, loteando a coisa pública para empresas, enchendo ainda mais de dinheiro os bolsos dos empresários que exploram serviços públicos e deixando a população, usuária desses serviços, cada vez mais a mercê dos tubarões da iniciativa privada. A consequência disso, como em todas as outras pautas dos chamados ultraliberais defensores do estado mínimo é que os ricos ficam cada vez mais ricos; e os pobres cada vez mais pobres, à mercê apenas da caridade desses mesmos ricos.
Essa é uma realidade contra a qual devemos lutar. É pelo fortalecimento do Estado, pela garantia de funcionamento integral do SUS, com mais investimento, com menores custos aos cofres públicos e contra o enriquecimento dos tubarões e mercadores da saúde pública que devemos batalhar.
*Daniel Zen é professor do Curso de Direito da UFAC e presidente do Diretório Regional do PT/AC. E-mail: danielzendoacre@gmail.com.
Em sua coluna na Revista Opera, Frei Betto analisou a primeira exortação apostólica do Papa Leão XIV, intitulada Dilexi Te (“Eu te amei”), publicada em outubro de 2025. O documento papal, segundo o frade dominicano, reafirma os princípios centrais da Teologia da Libertação ao associar fé, justiça social e compromisso com os pobres, posicionando-se contra a ideia de que a pobreza resulta de mérito individual ou de escolhas pessoais.
O papa declara no texto que “os pobres não existem por acaso ou por um cego e amargo destino. Muito menos a pobreza é uma escolha para a maioria deles”, criticando o discurso meritocrático que reduz desigualdades estruturais a falhas pessoais. A exortação defende que a fé cristã deve estar ligada ao amor concreto e à transformação das estruturas sociais que geram exclusão, retomando a tradição latino-americana expressa nas conferências de Medellín e Puebla, onde se formulou a opção preferencial pelos pobres.
Frei Betto destaca que o texto papal dialoga diretamente com a realidade brasileira, marcada por desigualdade, racismo estrutural, patriarcado e degradação ambiental. Para ele, a exortação reforça a ideia de que a evangelização exige compromisso político e social. “Dilexi Te rompe com a falsa dicotomia entre fé e política ao afirmar que não se pode separar a fé do amor pelos pobres”, escreve o autor, lembrando que a pobreza no país “tem rosto, cor e território”.
O documento também reconhece o papel dos movimentos sociais como expressões da busca por justiça, citando os esforços populares contra as causas estruturais da pobreza. Em trecho reproduzido por Frei Betto, o papa afirma: “A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo, é uma forma de fazer história e é isto que os movimentos populares fazem”.
A análise ressalta que o texto pontifício legitima a linguagem e a prática da Teologia da Libertação, ao reconhecer a presença de Deus entre os pobres e a necessidade de ações concretas de transformação social. Frei Betto conclui que Dilexi Te “chega como reforço e confirmação da Teologia da Libertação, lembrando que o amor de Deus é libertador e denuncia as causas da injustiça”.
Foto: Catholic Church England and Wales /Mazur/ cbcew.org.uk
O Brasil investe cerca de 5% do PIB em educação, um percentual que impressiona. À primeira vista, parece um esforço exemplar. Mas, quando dividimos esse volume de recursos pelo número de estudantes, o resultado é um dos menores investimentos por aluno da OCDE. A conta não fecha porque o problema não está apenas no tamanho do bolo, mas em como e onde o bolo é repartido.
O percentual do PIB é uma fotografia política: mostra o grau de prioridade, mas não revela qualidade nem eficiência. Países diferentes podem aplicar o mesmo percentual do PIB e obter resultados completamente distintos. Depende de como organizam seus sistemas e de quanto garantem equidade e continuidade nas políticas públicas.
Outro critério é comparar o Brasil com países de características semelhantes, como Chile, México ou Colômbia. Essa análise é mais justa, pois ajusta pela capacidade fiscal e pelo tamanho da população. Mas há um risco: quando todos têm problemas parecidos, a comparação pode confortar na mediocridade. A referência correta é importante, mas a direção da mudança é o que realmente importa.
Comparar o gasto por aluno do Brasil com o dos países de melhor desempenho da OCDE pode ser inspirador, desde que não seja ingênuo. Finlândia, Canadá e Coreia não chegaram lá apenas porque gastaram mais. Chegaram lá também porque planejaram melhor. Transformaram investimento em capacidade pública, em gestão e em compromisso de Estado.
O Brasil tentou enfrentar esse desafio com o Custo Aluno-Qualidade (CAQ). A ideia nasceu como tentativa de definir o investimento mínimo necessário para garantir um padrão básico de qualidade. Mas parte da formulação acabou presa a uma visão normativa e homogênea, que trata a qualidade como se fosse um preço fixo, igual em todo o território nacional.
Minha leitura é diferente. O CAQ não deve ser um número, mas um processo permanente de pactuação federativa, que considere as desigualdades territoriais e a capacidade de gestão local. Um instrumento vivo, que ajude a converter o gasto em aprendizado e equidade, e não um índice estático a ser replicado de forma burocrática.
A pergunta que deveríamos fazer não é “quanto investir?”, mas “para quê e com que Estado”. Isto é, com que capacidade pública, com que instituições, com que projeto de país.
Um investimento é razoável quando é compatível com a riqueza do país, comparável ao de seus pares e suficiente para garantir equidade e aprendizagem. Mas só faz sentido se for capaz de transformar recursos em capacidade pública.
A educação de qualidade não se compra. Nós, como governo e sociedade, a construímos. Mais do que isso: o custo da qualidade não está no orçamento; está na inteligência do planejamento, na coerência das políticas e na persistência das instituições.
Enquanto não entendermos isso, continuaremos gastando muito e investindo pouco.
Sobre o autor: Binho Marques, 62 anos, é ex-governador do Acre (2007-2010). Historiador e mestre em educação pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Atuou como professor, gestor público, secretário de Educação (municipal, estadual e no MEC/SASE), consultor do Unicef e parceiro de Chico Mendes em comunidades extrativistas. Hoje integra o Conselhão e atua na tmc1 – escola de gestão.
Temos motivos de sobra para celebrar. A aprovação do SNE (Sistema Nacional de Educação) é uma conquista histórica, que coroa quase 1 século de lutas – das vozes pioneiras de 1932 às centenas de gestoras, professores e militantes que, em diferentes tempos, acreditaram que o Brasil precisava de um sistema nacional capaz de garantir unidade na diversidade.
Mas a festa não pode nos distrair. O SNE nasce como um sistema de sistemas – um organismo vivo, federativo, descentralizado, de múltiplas camadas. Por isso, será ainda mais complexo que o SUS (Sistema Único de Saúde), ao qual tem sido constantemente comparado. A analogia é justa, mas não literal.
O SUS é hierárquico e quase prescritivo. A educação, por essência, é mais plural e processual. O que o SNE compartilha com o SUS não é a forma, mas o propósito: a defesa do bem público, o compromisso com a universalidade, a coragem de transformar um direito em política concreta.
O SUS é o irmão mais velho, que enfrentou os caminhos mais duros. O SNE é o caçula da federação cooperativa – chega mais tarde, mas traz a mesma vocação de justiça e solidariedade.
No entanto, o maior desafio, definidor da viabilidade do sistema, ainda está à frente: definir o que é padrão de qualidade de sua constituição sem cair na armadilha da qualidade padrão. A diferença parece sutil, mas é profunda.
O padrão de qualidade é o piso de direitos que a Constituição garante a toda criança e jovem, onde quer que vivam. A qualidade padrão é o contrário disso: um molde único, que ignora culturas, territórios e contextos.
Um país tão diverso quanto o Brasil não pode ser educado sob uma régua só. A ideia de “padrão de qualidade” já foi capturada por simplificações perigosas. Quando o CAQ (Custo Aluno Qualidade) surgiu, era uma equação para entender que qualidade se podia alcançar com os recursos disponíveis. Depois, virou o oposto: quanto precisamos gastar para alcançar uma qualidade ideal.
A mudança ajudou a enfrentar o subfinanciamento, mas também congelou a ação e a inovação entre os gestores dos sistemas subnacionais – como se a qualidade só existisse quando o dinheiro estivesse todo garantido. O SNE precisa romper com esse determinismo. Financiamento e qualidade caminham juntos, mas não se reduzem um ao outro.
O desafio real é articular custo, equidade e diversidade – equilibrar justiça distributiva e liberdade pedagógica. Isso significa usar o SNE para organizar todas as formas de complementação supletiva da União e dos Estados em torno de um princípio comum: justiça educacional com equidade.
O Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) foi um avanço, mas as desigualdades permanecem imensas. Se o SNE não orientar os fluxos de financiamento e os critérios de redistribuição, será só um novo nome para velhos desequilíbrios.
Diferentemente do que muitos dizem, o SNE não é o “SUS da educação”. Ainda bem. Educar é muito mais do que prestar um serviço: é formar pessoas, reconstruir laços, produzir sentido coletivo e fortalecer a democracia, com pessoas altivas, autônomas, produtivas e mais felizes.
O SNE precisa aprender com o SUS em seus propósitos, mas não em sua forma. A educação não cabe em protocolos; precisa de princípios, não de checklists.
A aprovação do SNE é um passo monumental, mas é só o início. A etapa mais difícil virá em seguida: transformar uma lei em prática federativa, um texto em política viva, uma ideia em sistema real. E, sobretudo, garantir que o “padrão nacional de qualidade” se traduza em diversos modelos com a mesma dignidade – escolas diferentes, mas igualmente boas; territórios distintos, mas igualmente respeitados.
Se o SUS nos ensinou a cuidar da vida, o SNE nos desafia a ensinar a aprender nesse mundo dinâmico em profundas transformações. Cabe à educação também cuidar dos nossos sonhos. Que o Brasil volte a sonhar.
Saibamos aprender com o irmão mais velho, sem perder o brilho do caçula.
Sobre o autor: Binho Marques, 62 anos, é ex-governador do Acre (2007-2010). Historiador e mestre em educação pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Atuou como professor, gestor público, secretário de Educação (municipal, estadual e no MEC/SASE), consultor do Unicef e parceiro de Chico Mendes em comunidades extrativistas. Hoje integra o Conselhão e atua na tmc1 – escola de gestão.