Artistas do Acre assinaram um manifesto contra a realização de cultos religiosos em espaços públicos voltados à arte na capital. O protesto surgiu após 24 igrejas evangélicas utilizarem a Filmoteca Acreana, no Centro, para celebrações religiosas contínuas por 24 horas, o que, segundo os artistas, contraria a finalidade do espaço.
No manifesto, os artistas argumentam que a realização de um culto religioso na Filmoteca Acreana, a única do Estado, desvirtua o propósito do local. Eles também apontam dificuldades no agendamento de suas atividades nos espaços culturais públicos disponíveis.
Atualmente, Rio Branco conta com cerca de 10 espaços culturais administrados pela FEM, incluindo a Concha Acústica, Teatro Barracão Matias, O Casarão, Memorial dos Autonomistas, Cine e Teatro Recreio, entre outros.
O manifesto também menciona o uso de verba pública para eventos promovidos por igrejas em espaços públicos, destacando que isso representa gastos com recursos, energia, segurança e servidores públicos em horários extras.
Os artistas pedem que os conselhos estadual e municipais de Cultura estabeleçam diretrizes urgentes para o uso de espaços culturais em todo o estado e cobram ação por parte do Ministério Público do Acre (MPAC).
Por fim, o manifesto solicita esclarecimentos do diretor-presidente da FEM, Minoru Kinpara, sobre o incidente. Até o momento, a FEM não emitiu um comunicado oficial sobre o assunto.
Confira o manifesto na íntegra.
MANIFESTO DE ARTISTAS E ENTIDADES CULTURAIS DO ACRE
Foi chocante e decepcionante para o setor cultural constatar em rede social, na sexta-feira, 8, o relato e os vídeos da Igreja Renovada sobre suas “24 horas de adoração e clamor” dentro da Filmoteca Acreana – espaço público de cultura gerido pela Fundação Elias Mansour (FEM).
A Portaria Nº 169, de 20 de março de 2023, da FEM, dispõe sobre o uso e a gestão dos espaços públicos. De acordo com seu Art. 5º, “eventos de outras naturezas poderão ser realizados nos espaços/equipamentos culturais apenas se não estiverem previstos eventos culturais programados anteriormente, mediante aprovação prévia da FEM. Todavia, tais eventos não podem afetar ou descaracterizar os aspectos culturais, históricos, curatoriais de cada espaço.”
Ora, um culto religioso, realizado no espaço de uma Filmoteca – a única do Estado do Acre – descaracteriza a finalidade do espaço.
Para além disso, trata-se de um espaço público climatizado, equipado com áudio e vídeo, segurança, energia elétrica, água, banheiros – tudo pertencente ao patrimônio público – sendo utilizado durante 24 horas para fins privados, para não falarmos dos servidores que têm a função de dar suporte técnico e promover o bom funcionamento do local – nesse caso, trabalhando em horário extra-turno, o que representa mais despesas com direitos trabalhistas.
É necessário deixar bem claro que tudo isso atenta contra os princípios da legalidade, imparcialidade, honestidade e lealdade às instituições públicas.
Essa prática vem se repetindo em instituições públicas em horário do expediente, em momentos diários de oração, seja no início, em intervalos ou no final do trabalho, e também em finais de semana e feriadões nos retiros religiosos que ocorrem em escolas também públicas.
No âmbito da Cultura, artistas, agentes culturais, trabalhadores e trabalhadoras têm enfrentado dificuldades para agendamento de pautas nos poucos espaços em funcionamento.
Várias são as situações narradas e algumas já foram ponto de pauta no Conselho Estadual de Cultura do Estado do Acre, como é o caso de um artista que foi obrigado a desmontar sua exposição devido a outra, oficial, ter “invadido” a Galeria de Arte Juvenal Antunes – também espaço público de cultura gerido pela FEM – que sediaria o projeto do artista mencionado, evidenciando um total desrespeito ao artista e sua obra.
Na própria Filmoteca Acreana, o único projeto de cinema coordenado por jovens cineclubistas, já em atuação há mais de 14 anos, enfrenta frequentemente problemas de agendamento, mesmo que com atividade a cada 15 dias.
O fato é que boa parte destes espaços estão fechados, esperando por reformas ou até mesmo sem estrutura para funcionar. Os espaços são poucos, se comparados ao número de templos religiosos em funcionamento.
Neste contexto, não encontramos razão que justifique a utilização desses espaços e equipamentos culturais para uso religioso.
Podemos também citar o constrangimento causado para muitos e muitas funcionários/as convidados(as) a participar, que lidam com o medo de enfrentar represálias, caso se neguem a isso.
Os espaços públicos não podem ser apropriados por convicções religiosas ou partidárias.
Das repartições públicas partem políticas públicas e decisões que atuam na rotina da sociedade.
A Constituição Federal garante o direito à expressão religiosa, mas deixa evidente que estruturas públicas não devem ser empregadas nesses eventos.
Por esse motivo, manifestação religiosa em espaços públicos, por mais sincrética que seja, não pode desviar a finalidade do espaço. O uso sistemático para esse tipo de atividade pode acarretar responsabilidade por improbidade administrativa.
Aos Conselhos de Cultura Estadual e Municipais recomendamos que se dediquem, com urgência, à elaboração de diretrizes e regulamentação para todos os espaços e equipamentos culturais existentes.
Ao Ministério Público Estadual pedimos que tome as providências cabíveis.
Ao órgão competente, a Fundação de Cultura Elias Mansour, e a seu diretor-presidente, Minoru Kinpara, pedimos esclarecimentos sobre o culto ocorrido por 24 horas na Filmoteca Acreana, além dos cultos/orações que têm ocorrido cotidianamente na instituição, bem como sobre a Portaria Nº 169, de 20 de março de 2023, elaborada pelo órgão, sem consulta prévia e debate com o Conselho Estadual de Cultura.